quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Uma viagem extraordinária pelo país dos incas – 2ª Parte


 
De Lima, partimos para Cusco, originalmente "Qosqo", que em quéchua significa umbigo do mundo. Já tinha ouvido muito sobre a cidade histórica, mas nada chegou aos pés do que encontrei. A começar pela chegada que é surpreendente. Se você tem medo de avião, pule este parágrafo. Se, porém, na sua lista de aventuras está incluída uma viagem aérea “exótica”, chegou a hora.
A informação de que Cusco está cravada em um vale, localizado no alto da cordilheira dos Andes, não quer dizer nada até o momento em que o avião se aproxima da cidade e você inevitavelmente constata que está a pouquíssimos metros das montanhas imensas. No auge da adrenalina, contei cinco metros, mas pode haver variações. Muito mais empolgante ou dramático, vai depender única e exclusivamente de você, é a inclinação do avião durante a curva que ele realiza antes de avistar a pista. O arremate só não foi perfeito porque a trilha do Indiana Jones não tocava no momento.
Cusco começou a ser inesquecível antes de conhecê-la. No aeroporto de Lima, muito bem planejado, por sinal, enquanto esperávamos pelo voo, tagarelávamos na fila com uma turma animadíssima de senhores e senhoras canadenses. Ao lado de uma das mais animadas, estava uma inglesinha de fala mansa, franzina, risonha, afetuosa e altruísta, pelo pouco que soubemos dela. A senhora, muito provavelmente octogenária – evidente que não cometemos a indelicadeza de certificar – é uma dessas figuras que rouba nossa atenção instantaneamente.
 
 
Cortês e bem disposta, mesmo depois de vinte e cinco horas entre voo e conexões, Eileen nos contou sobre coisas que a faziam seguir mais radiante pela vida. Viajar pelo mundo, servir ao próximo e curiosamente aprender português figuravam entre elas. Ao chegarmos a Cusco, levamos Eileen ao hotel antes de nos instalarmos no nosso. Durante o trajeto, nos apaixonamos de vez por ela. Aquela inglesinha, absolutamente simples e desprendida, era não somente Ph.D em matemática, pela Universidade de Cambridge, onde lecionava, mas uma das maiores pensadoras nessa área. Naquela mulher eu senti que havia muito do que cada dia mais falta ao mundo: generosidade, sabedoria, humildade e delicadeza. Enfim, em Cusco.
No hotel, nosso primeiro contato foi com o chá de folhas de coca, mais consumido nos Andes do que café, em função da altitude vertiginosa de 3.360 metros do nível do mar. Antes que a cabeça pesasse, o ar virasse artigo de luxo e as pernas dessem sinal de cansaço irrefutável, descansamos por três longas horas. Dali em diante nossa missão era a um tempo despretensiosa e divertida: perambular pela cidade sem guia nem roteiro.
 
 
Estava extasiada por poder usufruir daquele poema secreto, do escuro dos cantos e vielas, das construções espanholas sobre ruínas incaicas, dos pequenos detalhes, dos encontros fortuitos de gente de todo canto do planeta, do recolhimento de quem encerrava o dia, dos vultos de quem seguia com pressa, dos olhares inquietos dos nativos, do silêncio de quem admirava a resplandecência imponente da Plaza de Armas. Minha alma estava nutrida. Encerramos a noite no pátio do hotel, ao som de um violino que reverberava magistralmente pelo edifício, do séc. XVI, com ar de mosteiro. Tudo tão calmo, bucólico e sublime que suspeito que tenha sido irreal.
 
 
No dia seguinte, parecíamos incansáveis para a maratona. Impressão que durou até eu me atinar para as ladeiras que eu deveria praticamente escalar para chegar a Sacsayhuaman, um dos mais imponentes monumentos incaicos, edificado nos tempos do Inca Pachacutec, ao redor de 1460, para proteger a cidade contra invasores. Enquanto percorríamos os enormes baluartes em forma de zigue-zague, uma situação inusitada. Com pinta de não sei o quê, fomos abordados por um grupo de cerca de cinquenta estudantes do interior do Peru. Todos, sem exceção, pediram para tirar foto conosco. Duvido que Angelina e Brad possam se gabar do mesmo feito em plenas ruínas de Sacsayhuaman.
 
 
Brincadeiras à parte, há passeios imperdíveis por toda a cidade. É imperdoável, por exemplo, que você não gaste boas horas visitando o Templo Inca do Sol ou Koricancha, onde sobre as bases do que restou do principal templo dos incas, foi construído pelos dominicanos o belíssimo convento Santo Domingo. Apesar da destruição e do saqueio dos espanhóis, os templos que restaram, que eram dedicados à adoração do trono e do arco-íris, valem todas as caras pasmadas. Não é exagero dizer que a lapidação de pedras tenha virado arte nas mãos dos incas. Se você for apaixonado pelas pinturas da Escola Cuzquenha, mistura do barroco europeu com a arte andina, a alegria será completa. Há instalações no convento que abrigam algumas dessas relíquias.
 
 
Localizada na Plaza de Armas, a Catedral de Cusco levou mais de cem anos para ficar pronta. Construída sobre o palácio do inca Wiracocha, a catedral guarda uma curiosidade, no mínimo, provocadora. Ao invés do pão de Leonardo da Vinci, a “Última Ceia”, representada na catedral, exibe um suculento cuy, porquinho-da-índia muito apreciado pelos incas séculos atrás. Segundo os historiadores, essa, digamos, adaptação foi a maneira que os indígenas que trabalhavam na construção encontraram para deixar a sua marca. Da Vinci e os espanhóis jamais esperavam por essa. Em matéria de museus, recomendo os didáticos Inka e o de Arte Pré-Colombiana, este último com ótimas salas temáticas das culturas nazca, mochica, huari, chimú, chancay e inca. Isto não é tudo e diante do que há em Cusco, está longe de sobrecarregar seu itinerário.
 
A cidade funciona de um jeito artesanal, com dias que atravessam de maneira harmoniosa e contemplativa, na mesma cadência com que passeiam as mulheres com trajes típicos em companhia de suas lhamas. Há um jeito de conhecê-la e não se trata de nenhum clichê: perder-se por ela. Seu cenário em estilo colonial combina dezenas de igrejas, praças, templos, palácios construídos em pedras milenares, fortalezas históricas, lojinhas mil de artesanato, sobrados senhoriais, hotéis, lojas de produtos de prata e roupas de pelo de alpaca, restaurantes – tudo para se percorrer a pé.
Pausa só deve ser consentida se, claro, for para comer. Em Cusco, experimentamos desde o afamado porquinho-da-índia até o talharim negro com camarões do excepcional restaurante Cicciolina. Como se vê, Cusco é bem mais do que uma parada para quem segue até Machu Picchu. Che Guevara, em seu diário de viagem pela América Latina, escreveu: "É uma cidade evocativa. Uma poeira impalpável de outras épocas cobre as ruas de Cusco". Não satisfeita, há poesia por toda parte.
 
 
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Onde ficar
 
Hotel Novotel – Calle San Augustin, 239, Cusco
 
 
Onde comer
 
Baco – Calle Ruinas, 465, Cusco
Calle del Medio – Plaza de Armas, 113, Cusco
Cicciolina – Calle Triunfo, 393, 2nd floor, Cusco
Limo Cocina Peruana – Portal de Carnes, 236, Piso 2, Plaza de Armas, Cusco
 
 
Renata Gonçalves

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Uma viagem extraordinária pelo país dos incas – 1ª Parte

Minha viagem ao Peru começou há exatos 16 anos. Com 13, eu era a adolescente mais abelhuda da face da terra. Pelo menos essa era a opinião da minha mãe. Também aos 13, entre outras peripécias, tramei escondido um intercâmbio para a África do Sul, me matriculei numa escola de teatro, escrevi um livro, plantei um pé de cebolinha e outro de alecrim e, finalmente, fiz um roteiro rumo a Machu Picchu com direito, evidentemente, ao Trem da Morte.
 
Para o meu total desespero, nada disso vingou, com exceção dos pés de cebolinha e alecrim que cresceram, reproduziram e morreram. Tristezas e muitas risadas à parte, Machu Picchu nunca saiu dos sonhos (o Trem da Morte, sim) e lá fui eu, em novembro do ano passado, rumo a uma das viagens mais incríveis e aguardadas de toda a minha vida.
 
Em Lima, ficamos por três dias. Foi razoavelmente tranquilo encontrar encantos na capital peruana, sobretudo, porque eu não tinha a menor expectativa de aterrissar numa cidade que para mim ficasse marcada pela beleza. Quer dizer, saí do Brasil, sim, com duas grandes expectativas: morrer de amores por Machu Picchu e comer muito e divinamente bem. Dito e feito. Com expectativas superadas e memórias que ganharam o direito de caminhar comigo até o fim, vamos a alguns relatos que talvez faça você (re)considerar a possibilidade de uma visita ao país dos incas na primeira oportunidade.
 
Lima é muito mais estranha do que você possa imaginar. Não chove forte na cidade há 41 anos – no máximo uma garoa no inverno para lembrar que você não está em outro planeta. Por isso, não há calhas nem bueiros. Nublada, quase sempre nublada, é praticamente impossível acreditar que você possa dispensar o guarda-chuva despreocupadamente. Segundo a Susie, guia simpática que nos recebeu no aeroporto, isso acontece porque existe uma corrente marítima que impede que as nuvens cheguem até Lima.
 
 
A névoa que encobre a cidade só se dissipa quando o sol está alto. Não é sempre. Lima tem as águas mais frias do Pacífico e é mais cinza e marrom do que exatamente colorida. Tem mais cactos do que flores e buzinas numa quantidade tão desesperadora que você passa a prometer evolução imediata no seu trânsito de cada dia.

Se tudo isso fez você desistir de visitar Lima, eu lamento. Não se engane pela primeira impressão. A cidade cinza tem também uma das temperaturas mais agradáveis durante o ano – quase sempre na casa dos 20 graus. Moderna, limpa, segura e com moradores absolutamente amáveis. É de lá um dos centros históricos mais charmosos da América do Sul e um dos museus mais atraentes também, o Larco. Se as ruas parecem monocromáticas demais, o artesanato do país cuida de empolgar as pupilas com uma fartura de cores, no mínimo, impressionante. É o mais bonito de todos que já vi.

 
Se nada disso foi suficiente para te levar até Lima, duvido que assim permaneça se eu disser que a cidade é considerada a capital gastronômica da América do Sul. Se você é da turma que dispensa qualquer contagem de calorias assim que tranca o cadeado da última mala, Lima é o lugar.
 
A riqueza gastronômica não se limita a restaurantes sofisticados. Se você não padecer de frescura crônica, não deixe de experimentar os choclos, espécie de milhos gigantes, vendidos em barraquinhas em vários cantos da cidade. No Bar Cordano, Cantina do Lucas para os boêmios de lá, peça o lomo saltado, iscas de carne à moda chinesa com batatas (dizem que há mais de três mil tipos delas no Peru) e a base de ají amarillo, a pimenta mais utilizada pelos peruanos. Para acompanhar, uma Cusqueña bem gelada, a cerveja mais popular, e não menos saborosa do país. Se ao final, exagero for seu sobrenome, caminhe poucos metros até a Casa de Literatura Peruana e por lá (o pátio externo é muito agradável) fique até der vontade de comer de novo.
 
 
Nossa rotina em Lima foi mais ou menos essa. Pausa: fui com meu namorado, que entende de cozinha, garfo e senso de humor. Numa roupagem bem mais moderna de Comer, Rezar, Amar, lá estava eu viajando pelos sabores de uma cidade – só que bem resolvidíssima no amor. A nouvelle cuisine peruana, uma combinação de receitas tradicionais com inovações, é extraordinária, mas fiquei especialmente encantada pelos pratos mais simples, que respeitam os ingredientes e os deixam brilhar sozinhos.


O ceviche, por exemplo­, nada mais é do que um filé de peixe fresco, cozido apenas no limão, com cebola, pimentões e coentro. É de comer de joelhos o ceviche do Astrid & Gastón, restaurante de Gastón Acurio, que além de chef badalado internacionalmente, tem se mostrado um grande agente de práticas sustentáveis com projetos com pequenos agricultores e comunidades pobres de Lima. Por lá, há um sentimento de que os peruanos nasceram para a cozinha. Eu não duvido.

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Onde ficar:

Doubletree El Pardo Hotel – Independencia, 141, Miraflores

 
Onde comer:

Astrid & Gastón – Calle Cantuarias, 175, Miraflores
Central – Calle Santa Isabel, 376, Miraflores
Fiesta Chiclayo Gourmet Av. Reducto, 1278, Miraflores
La Rosa Náutica Espigón 4, Circuito de Playas, Miraflores
Rafael Osterling  San Martín, 300, Miraflores
Restaurante e Bar Cordano – Esquina Jr. Carabaya y Jr. Ancash, 202, Lima



Renata Gonçalves