sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Comida para a alma

Sou muito feliz em lugares onde como bem. Comer bem, lembro, pode não ter absolutamente nada a ver com sofisticação. Já comi mal no que é considerado o melhor francês de Belo Horizonte e divinamente bem em um muquifo no vilarejo mineiro de Milho Verde, bem antes de vir a se tornar um destino, digamos, cult. Muitas de minhas memórias afetivas não me deixam mentir.
Com amigos inesquecíveis, às margens do Rio Capibaribe, no coração do Recife antigo, comi o único petit gâteau de rapadura da minha vida. Prefiro que seja assim. Vai que o segundo, sendo um fiasco, desbanque a lembrança do bolinho infinitamente porreta, sobre o qual, inclusive, sigo falando com deus e o mundo na tentativa de mantê-lo tão vivo quanto o belo cenário descoberto do alto do Paço Alfândega.
Com a minha ex-sogra, comi um soufflé de caranguejo em um bistrô totalmente fora do circuito óbvio e turístico de Paris. Junto com ele, algumas taças do vinho da casa, do qual só me recordo de ter nos deixado ainda mais alegrinhas do que de costume. De sobremesa, os deuses da comilança ainda nos permitiram provar um soufflé de pistache com bastante calda de chocolate amargo. Um banquete para os sentidos.


Em Bom Despacho, cidade do interior de Minas onde meus pais foram criados, minha infância tomou forma, cheiro e sabor. Nada era mais poderoso do que chegar à casa da tia Dila e ouvi-la dizer: “- Vou fritar biscoito de queijo!”. Aquela frase mágica foi eternizada pelas minhas papilas gustativas e, claro, pelo coração.

Também da infância vem a sopa de cará (ou inhame para que você não tenha de ir até o Google) da minha avó Zeli. Por muitos anos, recebi o conselho: “- Fia, toma, porque cará é bom para o sangue!”. Antes de sua partida, eu disse a ela que nada no mundo poderia ser mais saboroso do que aquilo. E disse também que tentaria colocar amor em tudo que eu fizesse, porque a sopa de cará significava exatamente isso.

Em Florianópolis, fui obrigada a dar uma terceira chance às ostras. As duas primeiras tentativas foram um fracasso retumbante. Inclusive, é uma dívida eterna que tenho com os três amigos que não sossegaram enquanto não escutaram da minha boca: “- Meu Deus, eu estava errada!” – num tom de arrependimento e gratidão. Naquele entardecer, cujo pôr-do-sol era mais afrodisíaco do que a ostra, desejei profundamente que todas as pessoas que eu amo estivessem ali.
 
 
Da pequena cozinha de um apartamento no centro de Belo Horizonte, de cuja ampla sala avista-se uma Igreja de São José iluminada e quase europeia – depois de alguns goles de Malbec –, saíram inacreditáveis panquecas de manjericão recheadas com shimeji. Ao som de Caetano, quem se libertou e rodopiou pelo salão jamais será capaz de esquecer.

Em recente viagem pelo Peru, fui tocada e surpreendida pela riqueza de sua culinária. A combinação de influências indígenas, europeias, africanas e asiáticas é arrebatadora. Não se passa incólume por ela, nem que você queira. Aos incas, que muito provavelmente devem ter sido cozinheiros de mão cheia, devo um dos momentos mais sublimes da minha vida: o encontro com Machu Picchu. Desconfio que tudo aquilo não tenha passado de um sonho ou, na pior das hipóteses, de um delírio. Irreal também parece ter sido o ceviche degustado no restaurante do chef Gastón Acurio, um dos mais admiráveis do mundo. Se não tivesse estado em tão boa companhia, eu realmente deveria suspeitar da minha sanidade mental.
 
 
O escritor irlandês George Bernard Shaw disse não haver amor mais sincero do que aquele pela comida. Se, enfim, a comida não servisse para nutrir, além do meu corpo meu espírito, se não me possibilitasse sentir a alma de um lugar e de um povo, e se não se constituísse como meu elo mais íntimo com o mundo, talvez eu achasse isso uma grande bobagem.


Renata Gonçalves

5 comentários:

  1. Que Belo!

    Ouvi péssimas críticas sobre o best seller Comer, Rezar, Amar. Mas me reservei o direito de não ler e também não julgar. Somente assisti ao filme gostando de algumas coisas e nem reparando em outras. Adorei as paisagens e adorei a maneira como se fala do amor, do espírito (ou da espiritualidade) e de comida!
    E toda vez que vejo um post seu maravilhoso sobre comida, imagino você no cenário daquela maravilha, seja de chinelos ou de salto alto, experimentando um pouco do sentido literal do título: COMER, REZAR, AMAR.
    E você de repente é uma outra Elizabeth Gilbert...

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    1. Fêzinha, você sempre alegra imensamente meu coração (...) Que delicada sua forma de enxergar o que escrevo. Mil vezes obrigada.

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  2. Adorei o novo blog, conheci pelo Blog da Maria Sophia! A maneira que você escreveu sobre os lugares me deixou com água na boca, só faltou os endereços desses lugares tão maravilhosos!

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    1. Obrigada pelo comentário! Não incluí os locais, porque não era a intenção que o post funcionasse como uma espécie de guia, entende. Foi um relato mais íntimo, no qual quis privilegiar as lembranças.

      (Pena não ter deixado seu nome...)

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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